É noite escura e cá vou eu caminhando ao longo desta estrada de asfalto gretado sem parar, morro acima morro abaixo… Isto é, deve fazer já dias-anos-meses que deixei o dito cujo mundo dos mortais, mas, penso que será ainda possível avistar algum tipo de fantasmagoria humana se olharmos agora para trás através da… isto é, é melhor não… é melhor não olharmos para trás e olhar sim sempre em frente o horizonte, o chão, o presente, e… já entretanto, essas pedrinhas ressaltando agora para os lados, são elas que nos hão de levar ao futuro, e a tudo o que há de estar lá no meio... E pronto, siga a marcha, portanto, enquanto avanço ouve-se já um certo tipo de som, isto é, vários murmúrios vindos d’além, para lá dos arbustos, dos arvoredos e das enseadas, como que, ganidos progressivamente se tornando latidos, e depois, tenores, sopranos, sopraninos, barítonos, vindos de jusante, de justaponte, de montante, não se entende bem. Ou seja, latidos miseráveis que progressivamente se tornam exuberantes, lascivos, vai se lá saber, quem sabe, cães vadios, chacais mutantes, sombras de fúria e agonia, anunciando a presença de um estranho e… Isto é, o cheiro do meu sangue despertando agora os pecados do mundo. E tu aí, sonhando com um possível salvador, um possível inimigo, quem vai saber a cor da besta. E, com o passar do tempo, esses latidos, esses ganidos, essas vozes, esses murmúrios, começam a decair, e depois, se vão transformando em uivos distantes... até que, fica apenas o silêncio, e pronto… aí vou eu, avançando furtivamente, furando a escuridão. E logo entretanto, ao chegar ao cimo do morro avisto então uma estranha luz, isto é, agora, ali, aqui, à nossa frente, temos o que aparenta ser um exímio poste de luz iluminando um enorme pedregulho, e lá no topo desse mesmo pedregulho está um ser, uma coisa… que nao se mexe… e depois, quando mais me aproximo melhor reconheço essa dita coisa, que aparenta ser mesmo parecida comigo, ou será contigo? …e já entretanto, vem a coisa descendo o rochedo, atabalhoadamente, e depois, uma vez atingido o solo, fica a coisa ali, aqui, estancado/a, me olhando de cima abaixo, e eu, também, aqui, indignado, encarando a dita coisa, o dito ser, de baixo acima. E entretanto, a eternidade falando, e depois, aquilo que me parece ser um chapéu de coco, uma cartola, vinda sabe-se lá de onde, vem mesmo cair na brecha de chão que fica entre nós os dois… E, sem perder tempo, vou eu já avançando dois ou três passos em frente e logo piso a aba desse mesmo dito cujo chapéu... e tu, o meu duplo, a "coisa", ou seja lá o que for, logo fazendo os mesmos movimentos que eu, e já entretanto, aqui(aí) estamos nós, cara a cara, os narizes quase se tocando, os olhos ficando maiores… e, sim, agora… só agora posso realmente entender, que, apesar de toda a nossa semelhança, não somos realmente a mesma pessoa. E, portanto, depois de trocadas umas onomatopeias, apresentações feitas, pergunto eu: “Quem és tu?”; “Eu sou aquele!”; “Oh, mas aquele, qual?”; “Este, aquele, o outro!”; “Hum, com muita certeza falas!”; “Sim, é que… tenho a verdade do meu lado!”; “Hum, mas que verdade?”; “A verdade verdadeira!!”; “Já estou a ver, sentes-te como uma besta e falas como um animal…”; “Um animal pelo menos não precisa de se preocupar com o raciocínio…”; “Ah sim, e tu, porque não descansas tu?”; “É que… tenho medo de machucar as flores!”; “Essa agora… bem sabes que o sofrimento é indissociável da vida!” digo eu; “Bem sei, bem sei, mas…”; “E o que mais poderás saber?”; “Sei que suas intenções não são dignas…”; “Oh, essa agora, e porque não serão elas dignas?”; “Porque tudo o que pretendes fazer aqui, é, explorar, confundir…”; “Oh, e o que haverá de indigno nisso?”; “Teu objetivo é a destruição!”; “Estás errado, amigo! Estou aqui para te levar ao castelo…”; “Essa agora, e porque achas tu que eu preciso da tua ajuda?”; “Está visto, amigo, precisas que alguém te ajude a retirar essas botas!”; “Essa agora! Não permitirei que me toquem!”; “Não tenha medo amigo, é simples, basta que chegue aqui mais perto e…”; “E as flores!”; “Como assim, quais flores?!”; “As flores que eu vou pisar para chegar aí”; “Ora essa! Preocupaste com os passos que vais dar e não te preocupaste com aqueles que já deste!”; “Eh verdade, gostaria de poder flutuar, mas…”; “Deixa-te disso companheiro, podemos resolver de outra maneira…”; “Como assim?”; “Vamos lá ver, se conseguires subir a uma dessas árvores, e se te pendurá-res em um de seus galhos, logo eu, facilmente, posso fazer o trabalho que necessita ser feito…”; “Hum, é plausível a tua intenção mas, e depois, o que poderás tu fazer com essas botas, uma vez removidas?”; “Poderei fazer com elas o que tu quiseres que eu faça!”; “Hum, então, poderás tu as fazer desaparecer?”; “Isso agora, já não sei bem… quer dizer, não sou nenhum mágico, mas, poderei talvez enterrá-las num buraco e…”; “Não, não pretendo que a terra seja remexida por essa causa mundana!”; “Oh, então, talvez possa eu esconder as ditas cujas debaixo das folhas secas e…”; “Pois mas, ainda assim, debaixo das folhas, continuaram elas ainda a existir!”; “Essa agora… estás a fazer o caso um pouco mais difícil… então, já que é assim, talvez possa eu, isto é, incendiá-las…”; “Hum, incendiá-las, e as flores?”, “Quais flores, aqui não há flores nenhumas, vá, chega-te aqui um pouco mais perto e estende-me a perna…”; “Não, não e não, afasta-te! Afasta-te de mim” diz ele recuando. “E então, vais ficar aqui para sempre?”, “Vou ficar aqui até encontrar uma razão!”; “Hum, é que…” digo eu, “Eu precisava de um amigo, quero dizer, um companheiro de viagem…”; “Com mil diabos… e para onde me quereis levar?”; “Preciso que me acompanhes ao castelo de areia!”; “Hum, e porque pensas tu que eu te poderei ajudar nessa tarefa?”; “Diria que, o motivo está mesmo estampado no teu rosto…”; “Oh, e o que tem o meu rosto?”; “Vejo que carregas a chave dentro de ti.”; “Ah sim, essa agora… e então, que pretendeis encontrar nesse castelo?”; “A liberdade mora lá…”; “Hum, então esse é o teu objectivo, a liberdade?”; “Isso!”; “E eu, se eu for contigo, o que me será atribuído!?; “Pra ti, a verdade pura!”; “Não está mal, avancemos então, estas botas já não me pesam…”; “Oh, mas, agora mesmo, já não posso, isto é, a incerteza acaba de tomar conta de mim!”; “Como assim!? Não há incerteza nenhuma, o teu objetivo é a liberdade, e eu te levarei a ela…”; “Me desculpe, mas, já não confio totalmente em sua presença!”; “E porque não confias tu, se somos irmãos!”; “Sim, mas, a incerteza mais forte que isso!”; “Ora essa, ainda agora eu me sentia assim e já não sinto mais….!”; “Então, sentes-te capaz de me carregar nas tuas costas?”; “Vamos embora!”; “Mas, embora para onde?!”; “Embora para o castelo de areia que falavas a pouco!”; “Oh, esse castelo era uma invenção minha, pura fantasia!”; “Sem problemas amigo, sua capacidade de fantasiar é estupenda! Fantasia ou verdade, não interessa, a crença faz a verdade!”; “Então quererás tu mesmo me guiar ao dito cujo castelo?”; “Afirmativo, eu te levarei ao castelo, o tesouro é nosso!”; “Então, e já não tens medo de machucar as flores?; “Não, na verdade, agora me sinto cheio de coragem!”; “Avancemos então!”; “Vamos embora!”; “Mas olhe quem vem lá!”; “Quem!?”; “Já passou, era a Libertinagem!”; “Essa agora!”; “Passou de repente naquela enseada e nem sequer reparou em nos!”; “Mas, vamos atrás dela, ou dele, não percamos tempo…”; “Não, nossa direcção é o castelo, e o castelo há-de ficar na direcção oposta à libertinagem, uma vez que a libertinagem estará com certeza a fugir às masmorras desse mesmo castelo…”; “Hum, o castelo pode ser invenção tua, mas o guia sou eu, portanto, eu é que tenho de dizer em que direção fica o castelo!”; “Esquece o castelo, não quero mais ouvir falar de castelo algum…”; “Então, já não queres ir?”; “Não, podes ir tu!”; “Mas eu já aqui estava quando aqui chegaste, e portanto, a bem dizer, este é o meu território”; “Os territórios não têm dono!”; “Oh, os territórios podem não ter dono, mas o dono da verdade sou eu! “Seja! A libertinagem acabou de aqui passar, e no seu alcance, deve estar pra chegar o desespero!”; “Cala a boca! Agora sou eu quem decide quem é quem!”; “As decisões são tomadas pela razão!”; “Não me digas!”; “Digo! Agora és tu o desespero!”; “Mas o desespero não era esse que estava para chegar?”, “Não, quem estava pra chegar já lá vai, sem sequer reparar em nós, foi a harmonia!”; “Oh meu Deus, a harmonia, e porque não reparou ela em nós?”; “Não reparou porque sabe ela bem que não passamos de uns tolos!”; “Oh, mas tu ainda agora eras o dono razão, e agora estás a deixar-te cair nesse absurdo!?”; “A razão é capaz do melhor e do pior…”; “Seja, mas já agora, ainda bem que essa harmonia não reparou em nós, porque… se ela se chega-se a nós, eu mesmo, em nome do desespero, era capaz de a jogar fora deste mundo…”; “É impossível ferir a harmonia!”; “Qual impossível! Não tens tu ideia do que eu sou capaz…”; “Ah pois não tenho!”; “Agora, mesmo sou até capaz de…”; “de?”; “Estou capaz de prever o futuro…”; “Hum, olá, estás agora armado em mágico?”; “É verdade!”; “E o que prevês tu?”; “Prevejo que a harmonia por aqui há de passar novamente mascarada de diabo…”; “Ah sim, não vejo nada…”; “Há que dar tempo ao tempo…”; “O tempo não existe!”; “Cala a boca e observa!”.
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